MINICLUBE #02: O ROMANCE NOS VENTOS UIVANTES E UM RETRATO SOBRE O ABUSO

25/03/2018

O ROMANCE NOS VENTOS UIVANTES: UM RETRATO SOBRE O ABUSO

TEXTO DE APOIO #03

Heathcliff é um ser humano movido pela melancolia, de quem a vida exigiu sobriedade cedo demais. Não conheceu os pais, não tem sobrenome, e foi levado para um lugar desconhecido para que tivesse a oportunidade de ser um novo alguém - essa, logo, lhe fora negada brutalmente pelo primogênito dos Earnshaw. Então, transformou-se num servo da casa e a dona de seu coração casou-se com outro para que pudesse manter sua posição social e, com isso, Catherine fosse capaz de proteger Heathcliff da violência praticamente diária a qual era submetido.

O Morro dos Ventos Uivantes trata-se, primordialmente, de uma história sobre a não concretização do amor verdadeiro e as consequências disso perante a perspectiva de um homem vingativo. Contudo, note que as atitudes de Heathcliff, por mais cruéis que sejam, configuram nada mais do que a sua incontestável e irracional vontade de causar dor a todos aqueles a quem ele considera responsáveis pelo fracasso de seu maior desejo. É justo? É correto?

Todo o contexto que envolve nosso anti-heroi, brilhantemente exposto por Brontë, causa empatia ao leitor que passa a vê-lo como uma vítima de suas condições particulares. Não seria Heathcliff apenas incapaz de se comportar de outra maneira, uma vez que não conheceu outras formas de agir e se relacionar? Afinal, nosso querido personagem nunca teve a oportunidade de, realmente, conviver com pessoas normais ou ter uma conexão saudável com outra pessoa disposta a mostrá-lo um amor livre de egoísmo, interesses ou julgamentos.

Isso, todavia, se dá com todos os envolvidos nessa narrativa e não o escusa de alguns dos comportamentos que adotou. Ainda que eu seja apaixonada por esse livro, quando o analisamos com a mentalidade do século atual, temos na dupla Heathcliff e Catherine um típico caso de relacionamento abusivo. Apesar de não se configurar fisicamente, o rapaz usa de diversas artimanhas para envolver a todos em sua teia de ódio. Ele é egoísta, sádico e ignorante, sendo essas características que se destacam - juntamente ao seu obsessivo amor, o qual nossos olhos tragicamente românticos e inocentes usam como uma justificativa plausível. Para citar alguns de seus comportamentos: engabelou Hindley Earnshaw, assim que voltou ao Morro para se tornar o dono dele e dar início a sua desforra, começando pelo próprio Earnshaw; o casamento entre ele e Isabella Linton aconteceu por puro interesse em causar Catherine o mais profundo dos mal-estares; Heathcliff usa de chantagem para convencer a filha de Catherine a fazer companhia a seu filho doente - por quem jamais teve qualquer tipo afeição - e assim, tenta impedi-la de ver o pai que se encontra em seu leito de morte; destrata constantemente Hareton, filho de Hindley, descontando indevidamente nele as frustrações que seu pai o fez passar. Em suma Heathcliff torna-se o algoz das duas famílias ao reproduzir os eventos que ocorreram com ele ao longo de sua vida.

Dessa forma, o próprio livro, como um todo, é uma constante lembrança de como o despotismo funcionava muito bem na época vitoriana. Despotismo, mais comumente conhecido como uma forma de governo, define-se como o poder estabelecido por um único indivíduo ou por um grupo pequeno de pessoas que visem os mesmos interesses. O poder do déspota é irracional e absoluto, sem a necessidade de qualquer espécie de regulamentação. Aqueles que convivem com o abusador são oprimidos perante imposições: físicas (empurrões, socos, chutes, etc.); morais (difamação, mentiras e outros tipos de veiculação de informações falsas sobre outrem com a intenção de denegrir a imagem dele ou dela); econômicas ou patrimoniais (controle, ocultação ou destruição dos bens do parceiro, a criação de uma dependência financeira proposital); sexuais (práticas sexuais sem consentimento ou que exponham o outro a qualquer tipo de perigo); e, por fim, psicológicas (ameaças, insultos, humilhações, atitudes que despertem ciúmes ou insegurança no companheiro).

Essas tiranias aconteceram na obra com maior frequência entre as personagens femininas em consequência do patriarcado. Como é sabido, esse sistema confere autoridade em todas as esferas possíveis ao homem adulto, dono da entidade familiar. Na era da Rainha Vitória, criou-se um perfil feminino que fosse capaz de espelhar as necessidades sociais por estabilidade. Para isso, escolheu-se a mulher do lar, com suas almas puras e incapazes de discutir negócios ou ciência, como a guardiã definitiva da moral e dos bons costumes.

É aí que esses conceitos se cruzam: Catherine é uma mulher que não busca zelar por sua família. É afrontosa, infantil, agressiva, por vezes exageradamente emotiva; tudo isso, somado à sua natureza extremamente volátil, faz com que ela representasse o oposto do imaculado perfil da mulher vitoriana. Ao seguir transgredindo as imposições, ela faz parte do grupo de mulheres as quais a crença médica dizia que tornavam a figura feminina mais vulnerável à insanidade do que a masculina. O despotismo, com seus constantes abusos, aliado aos conceitos do patriarcado, serviram como forças malignas que restringiam os direitos da mulher que buscasse mais do que pertencer passivamente à uma família.

O Morro, portanto, nada mais é do que um microcosmo dessa problemática: os homens controlam e ditam o ritmo do enredo. Hindley usa de sua posição social e sua força física para subjugar crianças, mulheres e até animais. Como é possível perceber, selvageria é algo terrivelmente comum nessa obra e foi um dos motivos pelos quais ele foi tão duramente recebido na época em que foi lançado. As minorias, incapazes de vencer e sem voz ativa, tornam-se vítimas dos abusos e esse é um dos fatores agravantes para a separação de Heathcliff e Catherine anos mais tarde. Cathy percebe que a única forma de se livrar do irmão é através do casamento e fazer de Heathcliff seu companheiro perante a lei significava que estariam eternamente condenados aos seus castigos e humilhações. Movida por seu caráter dúbio e secretamente narcisista, Catherine, falsamente descrita como um espírito livre, age de acordo com dezenas de mulheres vitorianas, algo que dá o tom de realidade necessário à obra.

Sobra a questão: O Morro dos Ventos Uivantes é uma obra que romantiza o abuso? Certamente não. Com Brontë, temos uma exposição crua e genuína das formas sob as quais o abuso pode se revelar dentro dos relacionamentos, quando geridos por pessoas com evidentes problemas psicológicos. A romantização do abuso acontece quando o abusador segue impune, recebendo sempre os mais diversos perdões para tudo o que comete; quando cenas envolvendo qualquer tipo de violência são descritas de forma a se crer que o amor que viola o outro é sagrado e saudável. As narrações feitas por Lockwood ou Ms. Nelly deixam claro quão abomináveis e tristes são todos os momentos de conflito e desrespeito. Não houve uma única cena dessas que me causasse deleite ou que fosse uma defesa expressa aos horríveis atos cometidos.

Dentre as muitas voltas e complicações desse livro, uma coisa é evidente: Heathcliff não vence. Seu rancor não se perpetua indefinidamente, como era seu desejo. A crueldade não se sobrepõe a tudo, ao final. Sua quase inexistente humanidade, por fim faz com que ele entenda que suas ações não o fizeram alcançar nada de significativo. A nova geração de moradores do Morro se libertou das amarras impostas pelo cigano, que admite sua derrota ao final do livro, após viver sozinho e aprisionado aos seus sentimentos tenebrosos.

Fica claro, com o desfecho dado ao livro e a seus personagens, que um ser humano não pode ser acusado e/ou recriminado pelo que se é feito com ele, contudo, tal como Heathcliff e tantos outros, devemos assumir nossa parcela de responsabilidade em nossas relações. Ao fazermos isso, exercitamos a autocrítica, nos tornamos pessoas mais tolerantes, abertas ao diálogo e passíveis a mudanças que possam contribuir efetivamente ao funcionamento saudável de nossas relações.


REFERÊNCIAS

BACHELARD, G. A Poética do espaço em Os pensadores: Bachelard. São Paulo: Abril Cultural, 1978.
BORGES FILHO, O. Espaço e literatura: introdução à topoanálise. Franca: Ribeirão Gráfica e Editora, 2007.
CHEVALIER, J; GHEERBRANT, A. Dicionário de Símbolos. 28ª edição. Rio de Janeiro: José Olympio, 2015. 

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